Corrupção e Negligência no Fornecimento Logístico em Cabo Delgado
Durante o pico da insurgência em Cabo Delgado, em 2020, relatos da imprensa expunham as precárias condições enfrentadas pelos militares destacados no Teatro Operacional Norte. Em meio a esse cenário crítico, o Ministério do Interior (MINT) contratou a Damotral Produções – uma empresa de publicidade com documentação irregular – para fornecer tendas e kits de ração de combate individual às Forças de Defesa e Segurança (FDS). O primeiro contrato, firmado em maio daquele ano e sem a validação do Tribunal Administrativo (TA), que o rejeitou por falta de documentos legais, resultou no pagamento adiantado de 127 milhões de meticais. Deste valor, apenas 12 milhões foram efetivamente usados na aquisição dos materiais.
Poucos dias depois, foi celebrado um novo contrato com a mesma empresa, desta vez no montante de 198 milhões de meticais, dos quais apenas 70 milhões foram aplicados na compra dos bens requisitados. O restante – cerca de 125 milhões – foi desviado e repartido entre intermediários do esquema. Esses acordos controversos ocorreram três meses após Amade Maquidade assumir o cargo de Ministro do Interior, função que exerceu por apenas 21 meses. O caso, sob o número 93/11/P/GCCC/2020, foi remetido ao Tribunal Judicial do Distrito Municipal de Kampfumo, onde permanece estagnado há mais de quatro anos.
Esse episódio evidencia como, em contextos de guerra, o sofrimento das populações serve como combustível para redes de corrupção. A análise da cadeia de decisões revela que a atuação criminosa se estende desde os setores logísticos até aos níveis superiores da estrutura operacional.
A rápida ascensão da Damotral Produções dentro do Ministério do Interior coincidiu com a nomeação de Maquidade. A empresa, inicialmente voltada para publicidade e agenciamento, passou a ser privilegiada em contratos com valores astronômicos – faturando mais de 300 milhões de meticais em apenas quatro meses, por meio de acordos altamente suspeitos.
O fato de uma agência publicitária ser escolhida para suprir material bélico e alimentar chama a atenção. A Damotral não apenas operava com documentação irregular, como também foi beneficiada com pagamentos antecipados, em desacordo com cláusulas contratuais.
Conforme aponta a acusação do Gabinete Central de Combate à Corrupção (GCCC), o processo de contratação foi viabilizado por Danilo Raffel, então chefe do Departamento de Aquisições do MINT. Raffel chegou a ser detido, mas pagou uma caução de dois milhões de meticais e respondeu em liberdade, indicando seu aparente conforto financeiro.
Inflacionamento Exorbitante
A Damotral Produções, cujo sócio principal é Francisco Augusto Madeira, com participação da filha Suzete Madeira como gerente, foi contratada por meio do contrato 17º/AD/20/DA/2020 para fornecer 550 tendas à Escola Prática da Polícia de Matalana. O valor acordado foi de 123 milhões de meticais.
Segundo Raffel, a escolha se deu após análise de propostas de três empresas: Lenom Servises (151 milhões), Moicano Investimento (valor similar) e Damotral (123 milhões). Contudo, a investigação indica que as duas primeiras propostas não foram efetivamente consideradas, revelando um arranjo prévio para beneficiar a Damotral.
A assinatura do contrato ocorreu em 20 de maio de 2020, mas o pagamento integral foi feito cinco dias antes, em 15 de maio. Nenhum documento válido havia sido apresentado ao TA, que acabou devolvendo o processo por falta de certidões da Autoridade Tributária, INSS, Instituto de Estatística e Direção Fiscal. As certidões só foram obtidas em agosto.
A importação das tendas, feita na África do Sul, custou à empresa cerca de 12,8 milhões de meticais (incluindo transporte e taxas alfandegárias), o que mostra um superfaturamento superior a 1000% em relação ao valor pago pelo Estado – um desvio de aproximadamente 110 milhões de meticais.
Ainda, contrariando o contrato, os bens só foram entregues entre junho e agosto, semanas após o pagamento, violando a cláusula CGC-14.1, que previa pagamento apenas após a entrega.
Mais um Contrato, Mesmo Esquema
Em 22 de maio de 2020, menos de uma semana após o primeiro acordo, foi celebrado outro contrato com a Damotral para fornecer 100 mil kits de ração de combate à PRM, no valor de 198 milhões de meticais. Um dia antes da assinatura, Raffel solicitou o adiantamento de 99 milhões de meticais (50% do valor), embora o contrato ainda não tivesse sido aprovado pelo TA – o que só aconteceu em agosto.
As propostas para esse contrato incluíam a Socofil (228 milhões), Francisco Madeira Produções (211 milhões) e Damotral (198 milhões), sendo que todas as cotações foram apresentadas por Francisco Madeira, proprietário da Damotral. Curiosamente, a empresa “Madeiras Produções” não consta nos registros oficiais.
Até outubro de 2020, a Damotral já havia recebido o valor total do contrato. No entanto, documentos das Alfândegas indicam que a empresa gastou apenas 72 milhões na compra e importação dos kits. Ou seja, houve um lucro indevido de cerca de 126 milhões de meticais – mais do que 100% do valor investido.
Os levantamentos bancários feitos logo após os pagamentos sugerem uma operação organizada para desviar os fundos públicos. Apesar de algumas detenções iniciais, os envolvidos foram libertados mediante pagamento de caução, e o processo permanece parado no tribunal.
UmEste caso não é isolado. Outros episódios de corrupção ligados à logística militar em Cabo Delgado já foram reportados, embora geralmente atinjam apenas os executores técnicos. Suspeitas sobre a participação de figuras políticas de alto escalão persistem, mas raramente se materializam em responsabilizações. A proximidade entre o poder político e o judicial ajuda a explicar a ausência de desfechos concretos e a perpetuação da impunidade.
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